[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 4 de março de 2010


Belas, temporal de 2008,
desleixos e tragédia


Hoje é dia de transcrições. Começo com um artigo publicado no jornal Público de ontem:


"A 18 de Fevereiro de 2008, na sequência do mau tempo, a força das águas derrubou um muro em Belas, junto à Estrada Nacional 117, tendo o carro onde seguiam duas irmãs sido arrastado para o rio Jamor.

Sara Gomes foi recolhida já sem vida de dentro do carro e o corpo de Zíbia Coimbra nunca chegou a ser encontrado, apesar de terem decorrido 15 dias de intensas buscas por parte das autoridades.

O advogado António Pragal Colaço surgiu como mandatário judicial das famílias, e anunciou durante meses que iria mover um processo contra a câmara de Sintra e a Estradas de Portugal, responsabilizando as duas entidades por homicídio por negligência.

Dois anos após o acidente, os viúvos das duas vítimas disseram à Lusa que julgavam que o processo estaria a decorrer em tribunal, mas a 28 de Fevereiro foram informados por Pragal Colaço de que já não representava as famílias.

“Pensávamos que o processo continuava a decorrer. Esta situação é muito difícil porque mexe com emoções”, disse à Lusa Mateus Gomes, um dos viúvos.

Carlos Nunes, amigo e porta-voz das famílias, adiantou que até domingo, 28 de Fevereiro, desconhecia a saída de António Pragal Colaço do processo que “nem sequer chegou a entrar em tribunal”, constatou.

“Recebi uma mensagem no telemóvel a dizer que já não era advogado do processo. Agora vamos procurar um advogado oficioso para tratar do assunto”, disse, adiantando que António Pragal Colaço “tinha oferecido gratuitamente os seus serviços em 2008”.

Contactado pela agência Lusa, António Pragal Colaço justificou a sua saída do processo por uma questão de “conflito de interesses”, dada a sua ligação ao Benfica (onde é comentador da Benfica TV) e a Fernando Seara (presidente da câmara de Sintra), mandatário da candidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do clube.

“Já não sou advogado das famílias há algum tempo por uma questão de ética “, garantiu Pragal Colaço, causídico que representou Dantas da Cunha no processo em que Vale e Azevedo (ex presidente do Benfica) foi condenado em 2006 a sete anos e meio de prisão.

António Pragal Colaço confirmou que o processo não chegou a dar entrada no tribunal, uma vez que durante o tempo decorrido após o acidente se encontrava a aguardar documentos solicitados à Câmara de Sintra e à Estradas de Portugal.

O causídico confirmou à Lusa que apenas informou as famílias no domingo, 28 de Fevereiro, de que já não seria o seu representante legal: “se calhar não tinha dito directamente mas tinha-lhes dado a entender isso”, adiantou.

O presidente da Câmara de Sintra admitiu à Lusa o estreitamento de relações com o advogado, por força do benfiquismo de ambos.

“Somos benfiquistas e temos convivido. Estimamo-nos muito um ao outro”, disse Fernando Seara. "

……………………………………

O texto é tão explícito que me dispenso de comentários. Apenas gostaria de acrescentar que, na altura, tão impressionado fiquei com a atitude de desinteressado patrocínio manifesto pelo citado advogado, que, sem o conhecer de parte alguma, telefonei para o seu escritório, dando a entender que, através do meu blogue, escrevia sobre o desconforto público que a notícia do acidente suscitara, portanto, em sintonia com a atitude do causídico.

A coisa ficou por ali. Claro que a minha ingenuidade militante se somou ao desconhecimento do que seja esse espantoso sentimento do benfiquismo que, pelos vistos, é tão sobrepujante que obnubila os mais nobres valores da cultura que a todos nos formatou. Foi na ignorância dessa especialíssima sintonia que acabaria por se manifestar, tão exuberantemente, entre o advogado e o autarca, que assinei dois textos para o sintradoavesso* que, por ordem cronológica, passo a transcrever:

[1º texto, 20.02.2008]

Tudo a meter água…

Depois de uma noite e madrugada de intempérie, não foi mesmo nada bonito verificar como as consequências ultrapassaram aquilo que, normalmente, é previsível em metrópoles consideradas civilizadas. Inundações subsequentes à ocorrência de excepcional pluviosidade, é verdade que acontecem por todo o lado. A atestá-lo, aí estão os canais de televisão, em cima do acontecimento, trazendo-nos a casa, cada dia que passa, as imagens de tais eventos, provenientes de todos os continentes.

No entanto, apesar da frequência com que acolhem tais notícias, os espectadores ainda conseguem discernir acerca das substanciais diferenças que tais reportagens registam, sendo levados a concluir que as grandes enxurradas, as grandes derrocadas de muros e barreiras, portanto, as situações mais gritantes, cenário de menores ou maiores tragédias, se verificam nas latitudes tropicais, normalmente a Sul, em sacrificados países da África, América do Sul e da Ásia.

Salvo raras e conhecidas excepções, na Europa central e ocidental, numa boa parte dos Estados Unidos da América e Canadá, aquelas cenas dificilmente aparecem nos ecrãs. Ora bem, a maior parte das imagens que todos vimos, captadas pelas câmaras na área metropolitana de Lisboa, denunciam uma realidade, salpicada de terceiro mundo, cuja aparência é a melhor avaliação do lamentável estado de desenvolvimento deste desgraçado país.

Por mais que os governos tentem, não conseguem esconder que, a montante desta e doutras congéneres e cíclicas (1967, 1983) tragédias, há lamentáveis práticas – certamente também de corrupção - que deram origem à construção em leito de cheia, à sistemática impermeabilização de terrenos, à falta de planeamento urbanístico, ao desrespeito das normas vigentes, ao facilitismo, a uma famigerada e perniciosa cultura do desleixo cujas consequências andavam por ali misturadas, envolvidas nas lamas e estercos que os planos das reportagens nos devolviam.

Certas áreas de Belas, de Camarate e de Sacavém, de Trajouce ou Manique de Baixo, subúrbios horrorosos, cilício à cintura de Sintra, de Loures ou de Cascais, são meros exemplos de como há manchas de perfeito terceiro mundo que sucessivos governos vão tentando esconder. Pois é, tentam, embora não valha a pena. É gato escondido…

Nós, que cá vivemos, outro remédio não temos, senão a obrigação de suportar os efeitos de tanto analfabetismo, das incríveis percentagens de iliteracia que explicam o comportamento de um incalculável número de habilidosos, instalados em todas as instâncias, privadas e públicas, até nas governamentais, mesmo ao mais alto nível.

Mas, para vergonha nossa, por exemplo, em Bruxelas, Viena, Paris ou Londres, bem se conhece e reconhece a singularidade desta mixórdia à portuguesa, da tal piolheira de que falava o Senhor Don Carlos de Bragança, como fruto da declarada incompetência de uma classe política incapaz de resolver, geração após geração, os problemas que, isso sim, são habituais em países como o Brasil, a Venezuela ou Filipinas e que enquadram as favelas do Rio de Janeiro, de Caracas ou de Manila.

PS: Aliás, num aparte final, lembraria que a chacota e falta de respeito de que os portugueses são alvo frequente, não só nas conversas de café e de clube, mas também nas chancelarias das grandes capitais europeias, é que justificam a sobranceria com que os media ingleses se permitiram tratar a Polícia Judiciária Portuguesa, a propósito do caso da miúda raptada. E, afinal, até parece que tinham razão…



[2º texto, 28.02.08]

Em Belas?
- o que o luto não cala


Neste nosso desgraçado país que continua sendo tão manifestamente afectado pela enraizada cultura de desleixo - também fruto dos mais altos índices de analfabetismo e iliteracia da União Europeia - até que ponto será necessário lutar, no sentido de tornar eficazes os efeitos da intervenção cívica de denúncia, contra cada evidente caso que ponha em risco a segurança de pessoas, ao ponto de lhes causar a morte?

É uma questão que sistematicamente se me coloca e para a qual continuo sem resposta. Recentemente, Loures, Camarate, o horror das inundações, a morte em Belas. Por analogia, ocorre-nos o caso de Entre-os-Rios, que tanta e natural consternação causou, para que nos perguntemos se seria de esperar que o colossal processo de mediatização decorrente, em vez de acicatar a sempre latente atitude de voyeurismo, poderia desencadear a reacção cívica que se impunha.

Esperava eu que afirmativa fosse a resposta àquela questão. E assim pensava, tendo em consideração aquilo que, sem presunção, julgo ser o meu profundo conhecimento da realidade nacional, em consequência da actividade como técnico superior do Ministério da Educação, durante anos e anos envolvido em projectos de intervenção integrada, em Trás-os-Montes e Alto Douro, Douro Litoral, Minho, Beiras, Alentejo e Açores, para além da zona metropolitana de Lisboa, em contacto directo com uma imensa diversidade de realidades locais.

Previa que uma calamidade, com a dimensão de Entre-os-Rios, não só acabasse por constituir um sério ponto de viragem, um definitivo alerta contra a chaga nacional que é a sistemática falta de manutenção de todo o tipo de infra-estruturas, mas também contribuísse para favorecer o fermento de uma atitude cívica inconformada e exigente, que não se satisfizesse apenas com o ressarcimento decorrente da recepção de indemnizações.

A verdade é que, num momento então propício e num terreno que era preciso ter explorado convenientemente, não apareceram as associações cívicas de diferentes perfis, fazendo o trabalho de mobilização afim da motivação e consciencialização para o envolvimento das populações, cuja concretização permanece totalmente pertinente, agora, na sequência deste infeliz episódio da intempérie dos passados dias 10 e 11 de Fevereiro.

Lágrimas de indignação

Conhecidas, lamentáveie e evitáveis causas, no âmbito da proverbial e fatídica cultura do desleixo, estão a montante das trágicas consequências do acidente de Belas. Naturalmente, não há entidade disposta a assumir a mínima responsabilidade e, muito pelo contrário, ao vislumbrar qualquer hipótese de que tal possa acontecer, logo trata de sacudir a água do capote...

Veja-se o caso da Câmara Municipal de Sintra. No dia 27 do mês passado, por ocasião da primeira reunião pública após a tragédia, o executivo municipal expressou pesar pelas duas mortes, fez um minuto de silêncio e o Senhor Presidente lembrou que aquela via é uma estrada nacional. Para bom entendedor... O Senhor Vice-Presidente enalteceu o empenho dos serviços municipais nas tarefas de remediação e o Senhor Vereador João Soares congratulou-se com o facto de a JF de Monte Abraão ter suportado os encargos com o funeral, esperando que o município tudo faça no sentido de minorar o sofrimento das crianças filhas das vítimas.

E pronto. Tudo resolvido. Como sempre, toda a gente de consciência tranquila. Entretanto, a família das duas jovens irmãs – que, duma assentada, perderam a vida em Belas - já anunciou a intenção de processar a Câmara Municipal de Sintra e a empresa Estradas de Portugal EP por homicídio por negligência, contando com o testemunho de pessoas que já se tinham queixado quanto ao péssimo estado em que o muro se encontrava.

Indignação consequente

No âmbito de uma tragédia que, assim, para sempre destroçou e enlutou uma família que podia ser a minha ou a vossa, quero manifestar a mais profunda admiração pela decisão que tomaram. Contudo, no dificílimo momento que estarão atravessando, adivinho como estas pessoas enlutadas gostariam de sentir a solidariedade consequente de todos os cidadãos que se indignaram perante a evitável perda destas duas vidas e não se conformam com expressões de pesar que não passam de formalidade de circunstância.

Com isto, e, através deste meu singelo contributo, apenas pretendo dizer da necessidade de dar público manifesto dos sinais de desconforto e de mal estar, suscitados por todas as ausências e omissões de atempada actuação dos serviços da administração central e local, que suscitaram os efeitos acumulados na origem do infausto acidente.

Estou em crer que, só deste modo, transformando em atitude cívica, responsável e consequente – aquilo que, assim não sendo, apenas entendo como lágrimas de crocodilo – estaremos à altura do momento de luto, incapazes de admitir atitudes que, escandalosamente, como no caso de Entre-os-Rios, acabem por ilibar os eventuais responsáveis.
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PS:

Desconheço se a Câmara Municipal de Sintra ou a Estradas de Portugal concretizaram quaisquer medidas tendentes a evitar a ocorrência de semelhante tragédia no futuro. Agradeço a alguém que possa elucidar a este respeito.

* Também o saudoso Jornal de Sintra publicou esta matéria na sua edição de 14.03.08



1 comentário:

Carlos Correia disse...

A comprovar que continuamos na mesma depois de várias tragédias é ver as lágrimas de crocodilo agora a propósito da Madeira. Em Belas nada foi feito para remediar a situação que esteve na origem daquela perda de vidas.

Carlos Correia