[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cívicas reflexões


Ultimamente, por uma questão de higiene – e, confesso, inclusive à custa de certo esforço, até porque se trata de matéria de inequívoca importância informativa – tenho-me eximido à referência dos sinais de extrema preocupação que governo e oposição insistem em induzir na vida dos cidadãos para além do limite do suportável.

Passo a explicar. A questão de higiene decorre de um propósito muito pessoal. Na medida do possível, tento escapar minimamente afectado, quando não incólume, aos miasmas do inesgotável caneiro de trampa que, originário da Rua de São Caetano à Lapa, passa pelo Largo do Rato e São Bento, a caminho das redacções dos media que, em vez de funcionarem como estações de tratamento de águas residuais, revelam manifesta incapacidade de procederem à indispensável filtragem, fazendo desaguar tais pestilências nos noticiários radiofónicos, jornais e telejornais.

Sinais e sintomas de quadro político tão pouco saudável, tivemo-los, com documental copia, antes, durante e logo depois do debate acerca do Orçamento Geral do Estado para 2011. Qualificar o nível do debate, as atitudes comunicacionais, os comportamentos individuais como lamentáveis é muito pouco. Já que me referi a sintomas [e sintoma mais não é que especial sinal] deixem que permaneça nesta terminologia semiótica para partilhar convosco quão preocupantes eles são e, de facto, nitidamente concludentes de um novelo de patologias sociais e económicas definidor de uma vasta síndrome.

Verdade e consequências

Apesar de, momentanea e directamente, ter silenciado a intervenção a propósito destas matérias no sintradoavesso, não deixa de ser neste contexto que incluo o debate e a luta pela extinção das designadas empresas municipais, assunto que tem merecido um espaço adequado nestas páginas. Portanto, não houve nem há alheamento, menos atenção ou falta de participação nos debates que me são acessíveis.


Certamente, tal como muitos de vós, considero que o mal que nos afecta, enquanto comunidade que vive para além das suas capacidades, é coisa recentemente agravada mas que já vem de tempos muito recuados. Todavia, ao contrário de muitos observadores, julgo que o problema jamais se resolverá em meia dúzia de anos. A camisa de onze varas dos condenados pela Inquisição é metáfora que bem se nos aplica pela extrema dificuldade em que nos encontramos. Pode ser que nos livremos das labaredas da fogueira mas, certamente, não nos safaremos sem umas boas e merecidas chamuscadelas…

De qualquer modo, para que haja hipóteses de mobilização dos cidadãos, a caminho da solução do gravíssimo quadro em que todos estamos envolvidos, imprescindível se torna que o cidadão comum conheça a verdade. Os decisores políticos de topo, ao mais alto nível, só têm uma alternativa, ou seja, a de porem em comum a verdade toda, sem eufemismos, sem meias palavras.

Uma questão de consumo

Posteriormente, impõe-se que entremos num radical processo de mudança de vida, de acordo com o qual profundamente se altere o paradigma de consumo. A medíocre classe política portuguesa nada tem feito no sentido de alertar os cidadãos quanto aos limitados recursos do país que não nos permitem consumir sequer como os espanhóis, italianos, gregos ou irlandeses (cujos PIB são superiores ao nosso).

Na generalidade dos casos, os portugueses que ainda podem consumir [naturalmente, excluo os desgraçados dos nossos mais de dois milhões de compatriotas que ou são endemicamente pobres ou vivem no limiar da pobreza mais abjecta…], consomem aquilo que não podem ou não deveriam. Convém lembrar que governantes tivemos, oportunamente libertos do pântano a que tinham conduzido a nação, que obedeceram a receitas apropriadas a um país de índices socioeconómicos da média Europa que, real, infeliz e fatalmente, não é o caso do nosso…

País errado, empobrecido e…

Quase de soslaio, poderia aludir a dois casos muito significativos do sector primário, relativos à agricultura e às pescas. Na realidade, empobrecemos ao deixar que, nos termos da Política Agrícola Comum, nuns casos, fossem abandonadas práticas agrícolas que geravam riqueza e obviavam a importação de bens alimentares e, noutros, se entrasse numa aplicação ruinosa dos subsídios comunitários, em que se chegou ao escândalo de desviar os recursos dessa fonte para a compra de carros de todo o terreno, construção de boas casas, etc.

De igual modo, nos poderíamos referir às pescas. A propósito, como esquecer que, agora, o actual Presidente da República tanto fale no projecto de nos voltarmos para as potencialidades do mar? Mas, afinal, então não foi ele que, enquanto Primeiro-Ministro, cedeu a toda a sorte de medidas que a então CEE nos impôs para o desmantelamento, não só da frota pesqueira longínqua mas também das de costa e artesanal? Que paradoxo!


Cumpre e urge que o português médio se convença de que vive num país relativamente pobre e empobrecido e como tal, mas com esperança na mudança, terá de viver. Igualmente, haverá que assumir que as restrições impostas pelo OGE 2011 nada resolvem quanto à geração de riqueza e, como vão induzir a concretização da mais que previsível recessão da actividade económica, nem sequer permitirão ao país a capacidade de honrar os compromissos quanto à liquidação das dívidas e juros dos créditos contraídos.

…talvez remediado

Daí que a despesa de qualquer cêntimo tenha de ser devidamente avaliada quer a nível do cidadão particular, quer pelas empresas privadas e, muito naturalmente, por toda a máquina da administração central e local. Temos de cair na real. Em termos do consumo, significa isto uma tal mudança de comportamento individual e colectivo que, nalguns casos terá consequências dramáticas.

Neste domínio, desde já convém contar com o agravamento da taxa de desemprego de cidadãos afectos à produção e comercialização de determinados bens de consumo que, a partir de agora, entram no rol dos supérfluos e dispensáveis. Trata-se do inevitável desemprego de uma força de trabalho que terá de se converter para o enquadramento noutras actividades.

Afirmar esta inevitabilidade de um desemprego necessário e fatal é quase cruel e desumano. Mas não há volta a dar. E, neste contexto, quem vos escreve, apreensivo quanto ao futuro, também é sindicalista, dirigente de uma grande federação de sindicatos da Educação, sector onde tanta incerteza se equaciona para trabalhadores docentes e não docentes.

Talvez estejamos prestes a ter de recorrer ao Fundo de Emergência da União Europeia ou a uma intervenção do Fundo Monetário Internacional. Se, em última instância, a vida de verdade que a comunidade portuguesa não pode deixar de observar, tiver de passar por uma via que talvez não consigamos evitar, pois, então, que se concretize, pela segunda vez em trinta anos. Sem dramas.


Sabemos que temos de passar por muito maus bocados e, se tal tivesse de acontecer, ficar-nos-ia o amargo de boca de entregar a terceiros a resolução de problemas muito nossos. Seria uma universal declaração de incompetência mas não o fim do mundo. Seria uma derrota difícil de suportar mas a encarar com dignidade.

Finalmente, num momento tão sério da nossa vida cívica, recuso-me a engrossar o tal caneiro com a matéria infecta, que para aí continua a fluir, à procura de anzol. Agora, denunciados por um destacado membro de grupo nacionalista, estão na berlinda familiares de José Sócrates… Não, por favor, já não se aguenta! Só a muita fominha de certa comunicação social sensacionalista mantém esse esgoto activo. Haja decoro! Aqui, no sintradoavesso, não contem com isso.


7 comentários:

Pedro Soares disse...

Amigo Dr. Cachado,
Acho bem não mexer muito na porcaria. Embora continuem as moscas talvez passe a haver menos mau cheiro...
Em Sintra a verdade chama-se combate contra a despesa pública principalmente pela extinção das empresas municipais.
Com este presidente ou outro é inevitável acabar com elas.


Pedro Soares

Carmo Vital disse...

Há muito trabalho a fazer para levar as pessoas à mudança do modelo de consumo da sociedade capitalista em que vivemos.
Em geral as pessoas ainda
não perceberam o grande
buraco da situação do país pelo
que até era melhor
a entrada do FMI para obrigar
à aceitação da verdade.
Carmo Vital

onceição Almeida disse...

Caro colega Cachado,

Concordo em geral consigo. Os portugueses não podem continuar a viver acima das possibilidades. Como professores, devemos fazer a parte que nos compete nas aulas com as crianças e jovens.
Compreendo a sua preocupação como
sindicalista mas também lhe digo que a sua amiga Isabel Alçada
está a fazer asneiras que
não se esperava...
Saudades,
Conceição Almeida

Anónimo disse...

Portugal está falido e a pedir crédito para pagar juros de dívidas. É um ciclo vicioso que afecta as futuras gerações mesmo aqueles que ainda não nasceram. Mesmo assim o primeiro ministro insiste em fazer o TGV e em Sintra as despesas não param nas mpresas municipais. Acho que os portugueses merecem a situação em que estão. Ninguém protesta
até parece que a população
não passa dificuldades.

Anónimo disse...

Se ao menos a comunicação social se debruçasse nos reais problemas do país. Não andará por aí algum jornalista sem o rabo preso a querer escrever um artigo de fundo acerca da Cultursintra? E acerca da Quinta do Relógio? E os partidos "defensores" do povão? Onde é que andam? Porque é que se calam? O Mundo ainda não está às avessas, está todo inclinado, à direita! A China tornou-se capitalista, cá por Sintra a CDU faz todo o jeito ao Seara, cala-lhe os sindicatos! Nas empresas municipais e afins os seus representantes nas administrações ficaram cegos, surdos e mudos. O BE? Há muito que não temos uns concertos organizados por eles.

Fernando Castelo disse...

Meu caro João Cachado,

Como espaço de reflexão, o texto justifica o aprofundamento do tema.

A questão central da vida política portuguesa prende-se com a má qualidade de quem nos tem governado, abusando da confiança conferida pelos votos. Se completarmos com a honestidade que nem sempre é comprovada face à flutuação das grandes linhas, ora anunciadas ora arquivadas, temos o estado de involução que nos vitima.

Passados 100 anos sobre a implantação República, o nosso regime passou a pluridinástico, onde os filhos, incipientes ou incompetentes, rapidamente surgem a (re)ocupar o lugar dos pais, configurando-se-nos o futuro com seus netos. As mesmas castas.

Neste contexto de podridão ao mais alto nível, em que oportunistas e ilusionistas enxameiam a administração, admira que os cidadãos não expressem mais firmemente a repulsa perante caras que encenam falsos conceitos sociais ou sentimentos patrióticos – infelizmente – sob a capa da legitimidade democrática.É a perversão da democracia.

Gentalha ambiciosa e sem princípios tem usado e abusado de dinheiros públicos, esbanjando-o com as suas "boas" intenções de arrepanhar uns votos ou brunir a imagem que lhes permita mais altos voos. Estes os responsáveis pela crise que atravessamos, estejam no governo ou em autarquias. Até ao dia em que cairão.

Ao invés da inevitabilidade do aludido "desemprego necessário", temos de correr, rapidamente, com quem nos tem andado a enganar.

Não foram os trabalhadores que papaguearam o paraíso nesta terra, riqueza e trabalho a rodos, influenciando a chegada de milhares que vieram à ilusão. Muitos já regressam, desiludidos, aos seus países.

Os trabalhadores não tiveram a megalomania dos estádios de futebol agora às moscas; não decidiram apertar o cinto para que grandes empresas privatizadas paguem aos accionistas milhões de mão beijada; muito menos aprovaram escandalosas remunerações em administrações de empresas com capitais públicos.

Nesta fase da nossa vida colectiva, o papão do FMI é invocado e apenas favorece os que esbanjaram o que era nosso, os que serviram clientelismos, quantos retiraram o tutano da nossa riqueza mas agora receiam que com uma intervenção externa tudo se desmascare.

Quem viveu os racionamentos do tempo da II Grande Guerra, as limitações impostas pelos custos da guerra colonial, a presença do FMI em 1983 (era Mário Soares o Primeiro-Ministro) já não vive amedrontado. É tempo de se exigir, sim, toda a verdade.

Progressivamente, entrámos numa fase mais evoluída da corrupção: a corrupção subliminal, onde se dão subsídios à espera de votos, onde o silêncio é recompensado com umas migalhas, onde os negócios passaram a agraciar favores.

Temos tido padrinhos, afilhados, favoritas, incompetentes alcandorados ao poder.

Cirurgicamente, políticos desonestos preparam notícias no tempo e no espaço, para que deles se fale, ou os tornem candidatos a candidatos de qualquer coisa.

O nosso problema é o drama colectivo que se aproxima e cujo fim ninguém sabe como vai ser, enquanto a classe que nós escolhemos para gerir a nossa vida terá um futuro risonho, com boas reformas e mordomias, vivendo à nossa custa como parasitas.

Portugal a isto chegou.

Franco Neves disse...

Caro João Cachado,

Estou espantado com a qualidade dos textos deste blogue e também dos comentários. Isto é uma lufada de ar fresco, a esta hora que chego a casa para vir ao sintradoavesso a conselho de
um amigo que o frequenta desde o início.
Há aqui ideias, assuntos, questões tão bem abordadas que podiam publicar-se em qualquer bom jornal. Parabéns e obrigado.

Franco Neves