[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mozart, que presença

Salzburg, 31 de Janeiro
Mozartwoche 2012

Ao contrário do que acontece noutras cidades europeias onde, de algum modo, passados muitos anos, por vezes séculos, após a morte de escritores, músicos, arquitectos ou filósofos que a terão notabilizado, ainda é possível sentir a sua presença, em Salzburg tal não acontece em relação a Mozart, o seu filho mais célebre.

screver isto tem os seus riscos já que logo me atacarão lembrando as casas-museu, onde nasceu, na Getreidegasse e outra, na Makart Platz, onde, mais tarde, viveu com a família. Provavelmente, também me dirão de duas estátuas, na praça com o seu nome e em Kapuzinenberg. E os Kugeln de chocolate, a sua figura glosada e recriada nas mais diferentes estéticas, um pouco por todo o lado? E o seu próprio nome em tudo quanto é comércio, camisolas, pastelarias, etc, etc…

Pois, muito bem. Mas é a isto que eu me refiro quando escrevo ‘sentir a presença’? Claro que não é. Querem um exemplo, significativamente notório do que possa isso ser que, ainda com muito por fazer para que se torne num paradigma? Pois pensem em Lisboa e na relação que com ela teve e manteve Fernando Pessoa. Aqui bebia uns copos, ali conversava em tertúlia, os inúmeros quartos alugados, os cafés, os passeios, os negócios da gráfica, as neuras, o rio, o sino da sua aldeia…

Em Viena, há um pouco mais dessa tal mozartiana ‘presença’. Mas aqui não. Decididamente, não. Muito turismo, casas-museu que expõem hipóteses de cenário ainda que com instrumentos musicais, objectos pessoais, etc, mas a tal presença substantiva, isso não. Lamento muito desapontar mas, se pensam vir a Salzburg em busca desse Amadé, desengano-vos já.

Isto mesmo constatou o querido e saudoso João Bénard da Costa, homem de superior bagagem erudita e cultural, observador de raríssimo estrato, um grande senhor da Cultura Portuguesa dos últimos tempos a quem Portugal muito deve*, que por aqui passou, por exemplo, para vir ouvir um Don Giovanni de muito badalada encenação, tendo oportunidade de escrever algo deveras semelhante ao que acabo de registar.

Escrevia ele que Salzburg, se alguma significativa marca apresenta, não de Mozart, mas da estética da urbe onde Mozart viveu até aos vinte e cinco anos, presença fortíssima de que nós ainda hoje beneficiamos, pois essa é a que Johann Bernhardt Fischer von Erlach, o grande arquitecto do período barroco, determinou para a posteridade, aqui deixando marcas indeléveis de um património riquíssimo, como as igrejas da Santíssima Trindade, da Universidade, das Ursulinas, da ireja do Johannspital em Mülln, Palácio Klessheim ou, ainda, no interior da igreja dos franciscanos, o fabuloso altar-mor, como já tive oportunidade de referir.

Porém, assim como, uns parágrafos atrás, tão desalmadamente vos desiludi, agora me apresso a compensar-vos com a certeza de uma presença outra de Amadé, qual seja a que se sente, vive e vibra todos os dias do ano, na Fundação Internacional do Mozarteum de Salzburg, da qual tenho a honra de ser membro e, atenção, muito especialmente, na Universidade do Mozarteum.

A atestá-lo, as centenas de jovens de todo o mundo, que aqui acorrem em busca de um ensino e musical vivência absolutamente de excepção, atraídos pelo legado e espiritual presença de Wolfgang Amadeus Mozart.Essa sim é a presença que, afinal, acaba por ser menos sentida pelos milhões de turistas que acorrem a Salzburg, absolutamente nada preocupados com Mozart e o seu legado e muito mais determinados ao gozo da possibilidade da visita aos lugares onde foram filmadas sequências de ‘Música no Coração’…

Nem queiram saber as histórias que poderia contar-vos sobre este alheamento das massas ignaras, aqui na cidade, em relação a Amadé. Não deixa de ser curioso, como o é noutros lugares, em relação a outras ilustres figuras, que Mozart tenha sido o ’isco’ para a frutuosa pesca do turismo e que, em simultâneo, seja tão ignorado.

Os jovens estudantes e graduados académicos do Mozarteum comovem-me todos os anos, pelo seu entusiasmo, dedicação, entrega e procura de Amadé, nas linhas dos pentagramas, nos interstícios das pautas, conduzidos por óptimos e atentos professores. Por isso, esta universidade é tão cobiçada e demandada por interessados de todas as latitudes. As provas de acesso são proverbialmente exigentes, os cursos não menos. Mas o ‘cartão de visita’ com a marca do Mozarteum de Salzburg abre portas em todo o lado…

É no contexto destas considerações e no absoluto e estrito respeito por ‘esta significativa presença’ de Mozart em Salzburg, que hoje vos trago a gratíssima memória do concerto do passado dia 31, na Grosse Saal do Mozarteum, precisamente com a Orquestra Sinfónica da Universidade do Mozarteum. Entre outras obras, incluindo, de Webern, ‘Cinco Peças Orquestrais, op.5’ e, de J. Haydn, a ’Sinfonia em Mi bemol Maior, Hob. I: 103’, gostaria de destacar a ‘Sinfonia Concertante em Mi bemol Maior para Violino, Viola e Orquestra, KV 364’ de Mozart.

É esta a orquestra académica através da qual os jovens vivem o privilégio de continuar o designado ‘Klang’ de Salzburg e que tem tido, desde 1999, a diligente direcção musical de Dennis Russel Davies. Mas o concerto desta data foi regido por Douglas Boyd, Maestro escocês e grande oboísta, que aqui conheci, há uns bons dez anos, ainda integrando a Orquestra de Câmara da Europa, da qual foi um dos membros fundadores. A propósito, se tiverem lido um dos meus prévios textos abordando a questão da postura de alguns jovens chefes de orquestra, pois aqui têm um caso de atitude irrepreensível, discreta, sóbria.

Os solistas, Thomas Reif, violino, e Ulrike Jaeger, viola, são de primeira água e tenho o prazer de poder partilhar convosco a certeza de que, na interpretação da sinfonia concertante, foram extremamente cooperantes, falando o’mesmo idioma’. Não se espantem porque é coisa que nem sempre acontece, nomeadamente, em presença de ‘galácticos’ como tive oportunidade de assistir, há seis anos, aqui também, num concerto no Grosses Festspielhaus em que o violetista Thomas Zehtmair, de modo algum, se entendia com o violinista Gideon Kremer. Pois é, egos desmedidos matam a Arte…

Muito atento a todos os naipes, especialmente às cordas, Boyd atacava qualquer hipótese de deslize evitando o mínimo desequilíbrio. A leitura da peça foi absolutamente irrepreensível e, sem dúvida, o Mozart que permanece no ‘Klang’ das três orquestras de Salzburg – Orquestra do Mozarteum de Salzburg, Camerata Salzburg e Orquestra Sinfónica da Universidade Mozarteum – andou por ali.

Em St Sebastian alojam-se muitos destes estudantes. Quando aqui venho, convivo com eles, em especial ao pequeno almoço, onde tenho conhecido alguns que já têm carreiras interessantes. Também é por isso que não troco St Sebastian por nenhum hotel das redondezas apesar de, no meu caso, os preços andarem ela por ela, uma vez que, embora amigo da casa, não gozo das tarifas mais vantajosas aplicáveis à rapaziada que aqui passa largas temporadas.

Portanto, se quiserem vir até Salzburg, vão lendo estas dicas e, já sabem, podem contar com a ajuda que já tenho prestado a quem estiver interessado em fazer uma visita não de turista mas de viajante.

Na impossibilidade de vos propor uma gravação com a Orquestra Sinfónica da Universidade Mozarteum, deixo-vos com estes dois gigantes David Oistrakh e Rudolf Barshai e a Orquestra de Câmara de Moscovo. E, propondo esta gravação, com estas duas lendas, pois fiquem sabendo que ainda vi e ouvi Oistrakh, em Lisboa, no Coliseu, em 1960, com Pedro de Freitas Branco, na direcção da Orquestra da Emissora Nacional, tocando o Concerto para Violino de Tchaikovsky.
Era eu miúdo, com o meu pai, o culpado máximo desta minha aventura de melómano inveterado.


*É com um gosto muito especial que posso garantir-vos estar o Presidente da Câmara Municipal de Sintra muito emSinfónica da Umiversidade do Mozarteumpenhado em concretizar uma ainda que singela homenagem à memória de João Bénard da Costa. Trata-se de uma atitude muito honrosa para o Prof. Fernando Seara, assim demonstrando quanto está atento aos valores da cultura nacional que, como no caso em apreço, teve uma relação muito estreita com Sintra.

http://youtu.be/Nf0_tKOyqkc
Mozart Sinfonia Concertante 2nd Movement. Oistrakh, Barshai, Moscow Chamber Orchestra www.youtube.com

Sem comentários: