[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

 
Esquerda politicamente correcta

[Leram "Defender Portugal", de Miguel Sousa Távares, na edição do Expresso de anteontem? Aconselho vivamente. Naturalmente polémico, em particular, a sua parte 2 não pode ser mais coincidente e concordante com o texto que subscrevi, publicado no Jornal de Sintra, no dia anterior, 28 de Junho, que passo a transcrever].

 

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Esquerda politicamente correcta


Sob o império do politicamente correcto, atitudes que, até há poucos anos, não causavam qualquer controvérsia, actualmente, passaram a suscitar inusitada perplexidade. Por exemplo, no domínio do posicionamento político, é cada vez mais difícil ao cidadão afirmar-se «de esquerda» e, simultaneamente, manifestar opiniões não enquadráveis na estreita mas prevalecente noção de esquerda. É assim que, não raro, a tais ousadias (?) logo se aplica o rótulo do paradoxo…

Este início de século e de milénio vai sendo marcado pela incomodidade da assunção de qualquer opinião individual contra a corrente prevalecente. Muito naturalmente, tal circunstância nada abona na avaliação da qualidade do tempo que passa e, pelo contrário, confirma como a geral e manifesta ignorância, se evidencia em percentagem bem mais significativa do que noutras épocas.

De facto, não sendo pouca a ignorância vigente, ela também é directamente proporcional à menor elasticidade mental para o acolhimento de ideias e realidades aparentemente contrastantes que, pela sua natureza e características, induzem à generalizada avaliação dos seus autores como gente paradoxal.

Quando um cidadão, conotado com a esquerda, ousa confessar em público o seu catolicismo militante e se apresenta flagrantemente contra o designado casamento entre pessoas do mesmo sexo; e, em diferente registo, provavelmente ainda mais contundente, se atreve a declarar uma afición tauromáquica sem limites ou uma fervorosa simpatia pelo espectáculo do circo, então, muito dificilmente será entendido.

Porque, em geral, a esquerda politicamente correcta, sem pitada de sal ou de pimenta, muito limitadinha, coitada, quando não é ateia será agnóstica, patrocina o casamento entre homossexuais, assina todas as petições a favor da pura e simples extinção dos espectáculos circenses desde que incluam animais amestrados e, por fim, quanto à tauromaquia, perante o copioso folclore dos últimos anos, estamos mais que conversados…

Esquerda, de contornos abrangentes, sem peias nem antolhos? Ah, isso é outra coisa e bem mais séria, capaz de acolher católicos, militantes ambientalistas, combatentes de todas as causas progressistas, grandes intelectuais, artistas, todos constantes de uma lista tão preciosa que não omitirá os nomes de Picasso, Hemingway ou Orson Wells, que tudo davam por uma boa tourada, com touros de morte, e com todos os outros ingredientes de excesso, tais como bom vinho e bonitas mulheres, na festa dos sentidos.

Afinal, a partir dos exemplos anteriores, se bem quisermos concluir, naqueles titãs da pintura, da literatura e do cinema, tudo se conjuga e nada se exclui, tudo faz sentido e nada é avesso àquilo que só podemos considerar como gente inteira, nitidamente à esquerda e sempre na face da Verdade, pelos mais dignos e interessantes caminhos da Arte, da Beleza e da Liberdade.

Politicamente correcto? O que é isso? Certamente, algo que não estará muito longe da hipocrisia institucionalizada, radicado no receio da polémica, na recusa da lúcida reflexão e da análise dialéctica, de tudo quanto, ao fim e ao cabo, seja susceptível de exigir às meninges um adequado trabalho. Como assim não sucede, como espantar-se perante o resultante, invariável e boçal alarde de domesticada ignorância?
 
 
 

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