[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 13 de julho de 2012




Homenagem da C. M. de Sintra a João Bénard da Costa


[Foi com este texto, publicado na edição do passado dia 6 do corrente, no ‘Jornal de Sintra’ que encerrei o ciclo dedicado à memória de João Bénard da Costa. Amigo da família, há dezenas de anos, aproveito esta pequena introdução para confirmar que a homenagem de Sintra tocou todos com especial emoção]


João Bénard da Costa,
Sintra em homenage
m

Durante mais de cinquenta anos, João Bénard da Costa viveu na «Casa do Parque», Rua Gago Coutinho, ao Monte da Estefânea, zona de grande sossego e algo retirada, mas bem no coração desta Sintra que, agora, tão oportuna e justamente, o homenageou.

Homem avesso à feira das vaidades, senhor de uma sofisticação que, de acordo com a sua concepção da vida, apenas se conjugava com a grandeza das coisas mais simples e verdadeiras, a evocação que ali aconteceu traduziu-se num momento de especial elevação, com todos os ingredientes par se lhe quadrar.

Foram convidadas e estiveram presentes dezenas de pessoas, algumas das quais, incluindo familiares, são figuras notáveis do meio cultural nacional. Pelas sete da tarde daquele dia de São Pedro, todos nos juntámos ali na rua, em frente do portão e junto ao muro onde, pouco depois, seria descerrada a placa evocativa. Para a partilha da palavra que se impunha, dois amigos de longa data, a mulher do homenageado e o Presidente da Câmara Municipal de Sintra.

Palavras ditas

Como não poderia deixar de ter acontecido, o que disseram e como o fizeram também constituiu um acto de cultura. Alberto Vaz da Silva iniciou com palavras de Jorge Luís Borges: “(…)Um homem propõe-se ter uma imagem do Mundo. Através dos anos povoa o seu espaço com zonas da terra, reinos, montanhas, baías, barcos, ilhas, peixes, salas, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer descobre que este paciente labirinto de linhas e traços desenha a imagem da sua face (…)”

Num registo em que destacaria a virtude da simplicidade, concluiu com referências à categoria do Tempo e ao caminho que conduz à essência das coisas realmente importantes: “(…) Para João Bénard da Costa, só alcançando o vértice, nos libertaríamos e sentiríamos verdadeiramente protegidos. O mais simples era também o fundamental. (…)

Torna-se- nos ainda mais azado regressar a Borges e antecipar como, através de zonas da terra, sonhos, montanhas, baias, barcos, tubarões, salas de projecção, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas, se descobre o paciente labirinto de linhas e traços que desenha a imagem de uma face. O João encontrou a pura face.“

Seguiu-se Guilherme de Oliveira Martins que relevou as linhas condutoras do genuíno magistério de João Bénard, prodigamente presente quer na obra quer nas actividades em que se envolveu:

“(…)Lembrar João Bénard da Costa é dizer, antes de tudo, que a sua memória está bem presente em todos os seus amigos. E Sintra é o melhor lugar do mundo para recordar. Poderia também ser a Arrábida! O Espírito, como o vento, sopra onde quer!

O João é um dos grandes escritores do nosso tempo. As suas crónicas, os seus ensaios, as suas reflexões ligam de um modo único e inesquecível a vida e as artes, as pessoas e os talentos, os mistérios e a sensibilidade. Seguir as leituras que tantas vezes nos fez das obras de arte – desde a pintura ao cinema, da música à escultura, da arquitectura ao teatro – é um fascínio.

Hoje, quando regressamos aos seus textos, sentimos que o mistério da criação e da criatividade é algo de apaixonante. Há sempre algo para compreender melhor. Por isso, as paixões do João acompanham-nos, e são inesquecíveis, porque somos levados a partilhá-las com entusiasmo, desejo e lembrança! Muito obrigado! Continuaremos a lê-lo e a seguir os seus passos!”

Depois, Fernando Seara que, não se limitando a um envolvimento institucional, antes produziu uma série de considerações através das quais, também a nível pessoal, se comprometeu de modo inequívoco:

“Hoje descerramos uma placa evocativa.

Fazemo-lo numa dupla envolvência. Uma, como mandatário de deliberações institucionais e, uma outra, como anunciador de sentimentos da comunidade de todos vós, familiares, amigos, vizinhos ou, simplesmente, conhecidos. Num e noutro papel está patente a premissa de se registar com admiração, nos assentamentos da nossa lembrança, o nome de um homem que nos merece a eterna gratidão pelo seu contributo para com o bem comum.

Este registo de memória, vem ao encontro da nossa noção de homenagem, como forma intrínseca de reconhecimento da verticalidade, coerência e dignidade de toda uma vida e, consequentemente, dos percursos percorridos pelo Dr. João Pedro Bénard da Costa, enquanto criava e recriava o seu “Tempo”, num axioma constante de procura do conhecimento, do saber e da consciência, enfim do “Modo”. (…)

Cremos, deste modo, que é na leitura destas observações e destas particularidades, encontradas na sublimação de ser, simultaneamente, professor e critico, que podemos reconhecer o propósito do ensinamento da descoberta da lembrança. Ou seja, a substância que fundamenta a razão do enaltecimento nominal que estamos a fazer, hoje, aqui, neste espaço, num simples desiderato de homenagem de quem criou estados de alma e avivou consciências. De igual modo, e para finalizar, julgamos saber que com este registo de memória iremos dar voz a uma vontade e a um gosto de João Pedro Bénard da Costa de não se despedir e de, por aqui, ficar. Quanto a nós, somos de saber que ele há-de gostar disso, enquanto, por aqui, estiverem pessoas e momentos feitos de “fitas”, de quem tanto ele gostava.”

Ana Maria Bénard da Costa fechou com a contida emoção que se adivinha:

A homenagem que a Câmara Municipal de Sintra presta ao João, neste dia de S. Pedro , festa do Município, concretizada através da lápide que fica exposta na parede da casa em que vivemos os dois durante mais de 50 anos, é para mim, para a minha família e para aqueles que foram os seus maiores amigos e que pedimos para estarem aqui presentes , um momento que ficará nas nossas memórias e no nosso coração.

Numa ocasião como esta, a sua falta faz-se sentir com mais dor mas a recordação do que ele foi – e lembro agora especialmente o prazer que tinha de estar perto daqueles que amava, a sua alegria de viver, o entusiasmo e a paixão que punha nas diversas tarefas a que se entregou – torna-se também mais viva e mais presente.

E presente ficará o seu nome neste muro da Casa do Parque por onde espero venham a viver novas gerações de Bénard da Costa e por onde espero venham a passar novas gerações com os apelidos dos amigos que tanto preencheram a nossa vida.

O João sempre sentiu como um imenso privilégio viver em Sintra, estar rodeado por esta paisagem mágica, poder olhar para o Palácio da Vila e para a Serra antes da ida diária para Lisboa e sentir-se envolvido pelas brumas tão comuns nesta terra e que ele sentia como tão familiares.

Por tudo isto e por muito mais do que isto que me vai na alma mas que não sou capaz de transmitir em palavras, digo simplesmente, em meu nome, e em nome de toda a minha família e de todos os amigos, ao Senhor Presidente Da Câmara, Sr. Dr. Fernando Seara, à Senhora Directora do Departamento da Cultura e Turismo, Sr.ª Dr.ª Maria João Raposo, aos Senhores Vereadores aqui presentes e ao Mestre Avelino Baleia, o artista que produziu esta obra, Muito e Muito Obrigada.”

Palavras escritas

Sempre com a maior informalidade, a evocação continuaria mas, então, à volta da mesa, um pouco mais acima, em São Pedro. Quando terminou o Dia do Concelho, com esta avivada memória de João Bénard da Costa, estava mais rico o património virtual de Sintra. Sintra esteve muito bem na atitude de reconhecimento. Bem viva, esta homenagem também atesta o desejo de marcar o tempo com um inequívoco sinal de uma cultura que se vive. Estamos todos de parabéns.

Acicatado, não só por aquela subtil referência do Presidente Seara a O Tempo e o Modo, mas também com o objectivo de confirmar a justeza de tudo quanto se dissera acerca do João Bénard, logo me ocorreu que, num dos primeiros números desta «Revista de Pensamento e Acção», exactamente, o seis, datado de Junho de 1963 – cujo conteúdo total era subordinado à questão: Arte deverá ter por fim a verdade prática? – em artigo intitulado “O cinema é um fenómeno idealista”, escrevia ele um longo parágrafo que tenho muito presente desde a primeira hora em que acedi ao texto integral. Partindo da singularíssima especificidade da câmara de cinema, as suas palavras são transversais, abrangentes, tão certas e certeiras na adequada descrição da criação artística, que não resisto a transcrevê-las, sabendo de antemão como vão concordar com a minha opção de assim encerrar esta evocação:

“(…) A câmara é um instrumento. Quem a detém não se limita a ver; observa, contempla e fixa. Junta essas imagens às suas, próprias e passadas. Só assim elas formam um todo. Esse todo é uma visão. Porque pessoal, única e eminentemente subjectiva, capaz de ir ao encontro de outras, igualmente pessoais, igualmente únicas, igualmente subjectivas. Assim se pode processar o amor de uma obra. Uma comunhão, uma memória comum. Porque participamos numa confidência (toda a obra de arte o é). Porque fomos interlocutores. E aqueles que confidenciam, como aqueles que sabem receber essa confidência, entendem o que quero dizer. Só esses – na agudíssima distinção de Kierkgaard – passam do lembrar ao recordar. Toda a obra de arte, porque confidência, apela para uma recordação. O que recorda não sabe esquecer. Compartilha um segredo, segredo que é idealidade e, como tal, com peso, sentido e responsabilidade muito diferentes da memória comum, que guarda e não conserva. (…)”

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

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