[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 30 de março de 2013

 
 

Mitsuko Uchida,
«a» mozartiana
 
[transcrição do artigo publicado na edição de 22.03.2013 do ‘Jornal de Sintra’]

É com alguma emoção que, apenas por hoje, regresso a uma faceta da minha colaboração no Jornal de Sintra, relacionada com a vida musical, que me levou a subscrever, durante alguns anos, em ritmo semanal, imensas páginas de comentários críticos. Se bem se lembram, tal actividade também
incluiu, mesmo quando relacionada com a imprensa nacional, a existência dezenas de exclusivos de cobertura de eventos em Salzburg. Ora bem, um facto recente se me impôs como determinante para este breve retorno a tal actividade, ou seja, a presença entre nós da grande pianista Mitsuko Uchida.

Veio ela à Gulbenkian, no passado dia 18, interpretar e, com a Mahler Chamber Orchestra, dirigir, a partir do piano, os Concertos para Piano e Orquestra Nos. 17 e 23, respectivamente, KV. 453 em Sol Maior e KV. 503, em Dó Maior de Mozart. Desde já, fica o aviso de que, não entrando na análise dos detalhes da interpretação destas peças, me limitarei a fornecer algumas pistas afins do entendimento da prestação de artista tão singular.

Naturalmente, a expectativa anteriormente gerada foi confirmada perante o esgotado auditório que, em delírio, vibrou com tal privilégio. Foi uma grande noite, da melhor música que se pode fazer e ouvir em qualquer parte do mundo. Entre nós, de facto, só a Gulbenkian, no ano em que sua própria orquestra celebra 50 anos de existência, tem o poder económico para comemorar a efeméride apresentando uma temporada que, como sempre, está recheada de estrelas.

Mitsuko Uchida, demiurgo

Mitsuko Uchida. Na tão pessoal abordagem do universo mozartiano, ela opera, em termos platónicos, como o demiurgo, i.e., qual artesão divino, sem criar de facto a realidade, modelando e organizando a matéria preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos. Pois bem, para que se entenda em que medida esta pianista é o demiurgo que proponho, preciso é que, previamente, nos entendamos quanto aos tratos de polé a que a obra de Mozart tem estado votada.

Ao contrário do que muita gente está convencida, Mozart é tudo menos aquele compositor bem disposto, que se ouve depois de um belo jantar. Tal convicção, entre outros abundantíssimos factores, não só resulta de um paradigma de ignorância, mas também se alia às nefastas consequências das deficientes leituras que a sua obra tem sido objecto. É que, ao longo dos tempos, mesmo os considerados grandes maestros e solistas o têm servido mal, muito mais do que razoavelmente ou bem… Em virtude de tais perversões, até em anos recentes, têm sido acrescentados, geral e nocivamente, muitos ademanes românticos, roubando substância essencial a grandes obras-primas, donde jamais deveria ter sido retirada.

Não é este anónimo escriba quem isto afirma, do alto da sua douta experiência de indefectível mozartiano, que ano após ano, corre para Salzburg, na mira de receber, sempre para partilhar, as oportunidades oferecidas por sucessivas edições da Mozartwoche, o mais prestigiado dos Festivais Mozart, assinado pela Fundação Internacional do Mozarteum. Não, quem isto mesmo tem afirmado, com a maior veemência, é o insuspeito e mundialmente conhecido Nikolaus Harnoncourt, agastado pelos malefícios que muitos músicos continuam a causar a Mozart. O anónimo João Cachado, esse, limita-se a estar atento, a estudar e a saber ouvir e a tentar transmitir.

Dualidade mozartiana

Mozart é aquilo que pode designar-se como um compositor dual, constantemente dialéctico. Em qualquer obra de sua autoria, na breve sucessão de compassos de um mesmo segmento, é capaz de fazer o aparentemente longo e distante percurso entre a alegria transbordante e a melancolia, a nostalgia, um quase desespero, para logo tudo se resolver, em saída mais positiva, à qual se seguem novos e outros mais contrastantes sinais. Ora bem, normalmente, enquanto esta avalanche de riqueza composicional acontece, a plateia continua a acenar benevolamente a cabeça, como se o compositor a não estivesse a interpelar e a desafiar para outros voos, da maior sofisticação e seriedade…

Sem entrar numa sempre controversa plataforma de comparações, neste caso, de pianistas, em que certos apreciadores defendem as suas damas e cavalheiros, entretendo-se em exercícios mais ou menos estéreis, não deixarei de considerar que Mitsuko Uchida é quem lidera o movimento de expurgação da obra de Mozart dos tais parasitas românticos a que aludi, ela que, igualmente, melhor terá compreendido e sabe transmitir as referidas características da dualidade mozartiana. E, portanto, recusando esse jogo de comparações, em especial com pianistas vivos, nada me custa integrá-la, isso sim, na dinastia dos grandes mozartianos em que pontifica a inesquecível romena Clara Haskill, falecida em 1960.

As primorosas interpretações de Uchida, no respeito escrupuloso de tudo o que, explícita e, também implicitamente, determinam as partituras de Mozart, é fruto do estudo permanente de todas as fontes históricas, que circunstanciaram a génese e o labor das composições, e que explicam afinidades com outras peças, a razão das opções mais ocultas do compositor ou deixam descobrir novidades absolutas, como os corajosos saltos no tempo que Mozart protagonizou. Trata-se de um imenso trabalho de investigação que dela faz uma das maiores conhecedoras do particular e difícil mundo mozartiano.

Técnica irrepreensível, espiritualidade, uma disciplina e auto-exigência que respira em cada gesto, eis os ingredientes do fenómeno que, pela primeira vez, ontem pisou o palco da Gulbenkian, cuja carreira acompanho há muitos anos como, aliás, as referências a esta mesma pianista demonstram, através das tais abundantes folhas de crítica musical que subscrevi e, em tempo, o Jornal de Sintra acolheu.

Uma última referência à Mahler Chamber Orchestra, que, há cinco anos, o jornal Le Monde considerou “a melhor do mundo”. Com ela, a também maestrina Mitsuko Uchida, concretiza um projecto de apresentação dos dois concertos referidos, explorando toda a sua global concepção de leitura e interpretação, bem como as mais subtis possibilidades de diálogo com os instrumentos que vão adquirindo protagonismo, em cumplicidades de excepcional recorte. Enfim, uma simbiose total. Sob a direcção do seu concertino, os naipes de cordas fizeram uma inolvidável apresentação do Divertimento para Cordas, SZ. 113 de Béla Bartók. Em suma, noite de glória!

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
 
 

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