[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 16 de novembro de 2013




Sintra,
Tolerância? - A quanto obrigas…


[Transcrição do artigo publicado no Jornal de Sintra, edição de 15.11.2013]
 
O exercício da autoridade democrática pelos autarcas é um assunto que me tem mobilizado ao longo de anos e anos de intervenção cívica e tem sido, especialmente em Sintra, meu imediato quadro de referência, que venho concretizando tal atitude, tanto no Jornal de Sintra como nas redes sociais.

Por se tratar de matéria relacionada com a conjugação de princípios e valores muito caros à vivência da Democracia, nenhum texto a propósito pode ser inócuo. De qualquer modo, procurarei manter a atitude de sempre, ou seja, a de recusar qualquer manifesto de contundência que, ferindo susceptibilidades, prejudique o acolhimento da mensagem e inviabilize a reflexão que se impõe.

No entanto, para efeitos da economia e pretendida eficácia deste texto, desde logo se me afigura indispensável especificar a noção de exercício de autoridade democrática que me interessa discorrer e partilhar com os leitores. Para que não subsista qualquer equívoco, apenas me referirei a alguns casos cuja matriz de incidência radica na articulação com a prática da designada «tolerância».

E, continuando na tentativa de explicitação, convém que nos entendamos quanto à acepção em que, com tanta frequência, é conjugado aquele conceito, sugestivamente registado entre aspas. Se o acto de tolerar, isto é, stricto sensu, a tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de sentir e de agir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às nossas, que, em si, evidencia sobeja prova de nobreza e abertura de espírito, já o seu entendimento como facilitador do incurso em atitudes lesivas dos interesses de terceiros, é coisa perfeitamente repudiável.

Ainda neste preâmbulo de esclarecimento do contexto, estou em crer que muito do descrédito em que tem caído a classe política – de todo o espectro partidário, tanto no todo nacional como no local, suscitando o flagrante desinteresse quando não o mais evidente repúdio dos cidadãos em relação à gestão da coisa pública, bem patente na altíssima percentagem da abstenção verificada nas últimas eleições autárquicas – radica na dificuldade que, precisamente, os autarcas têm demonstrado no exercício da autorIdade democrática no contexto dos mandatos para que foram eleitos através do voto popular.

Ora bem, chegado o momento de focar a atenção no concreto quotidiano da comunidade sintrense, bastará trazer à colação duas questões cuja abordagem, mesmo muito sucinta, imediata e copiosamente comprova a pertinência do que venho expressando. Naturalmente, em simultâneo, bem demonstram como a falta ou o deficiente exercício da autoridade democrática, em articulação com um entendimento menos consentâneo do conceito de tolerância, acabam por resultar em prejuízo da qualidade de vida.

Casos bem concretos

Apenas dois problemas, ambos no domínio do estacionamento. Primeiramente, o de viaturas particulares e autocarros de turismo, bem como o subsequente acesso ao centro histórico, aos pontos altos da Serra e outros lugares do comércio e serviços na sede do concelho. Seguidamente, a inexistência de uma área de parqueamento de autocaravanas, meio de transporte de turismo que, cada vez mais, coloca os mais sérios problemas aos destinos turísticos.

Há décadas por resolver, é sabido que o primeiro pressupõe uma estratégia integrada de resolução. É neste sentido que, por exemplo, a instalação dos parques dissuasores periféricos e requalificação de bolsas de estacionamento, hão-de articular-se com as soluções equacionadas para outras importantes questões, como a redefinição da rede dos transportes públicos, controlo dos fluxos de trânsito – com o inevitável encerramento, nuns casos periódico, noutros definitivo, de determinadas vias – ou a escrupulosa observância de um absolutamente civilizado regime de cargas e descargas, etc.

Naturalmente, enquanto não forem adoptadas, decididas e concretizadas as medidas correspondentes ao anterior enunciado, a vida tem de continuar, mas, atenção, como é suposto, sem colidir com normas vigentes em dispositivos legais, como o Código da Estrada, que determina e condiciona o comportamento dos cidadãos condutores, impedindo-os de fazerem das vias de circulação os parques de estacionamento que mais jeito lhes dão...

Quanto às autocaravanas, a situação é tão preocupante quanto caricata a solução que tem vigorado, em pleno centro histórico, a escassa centena de metros dos Paços do Concelho, na zona do Rio do Porto. A foto remonta a Agosto e já ilustrava um artigo que subscrevi, também publicado aqui no JS, em 1 de Setembro de 2006. Nada, nada se alterou e, de facto, como toda a gente sabe, só tem aumentado a procura. Parece que não se está mal, a cena demonstra-o, pois há quem abanque entre dois veículos e até já tenho visto roupa estendida… Problemas de higiene pública e de segurança de pessoas e bens, a tudo se fecha os olhos.

A realidade é que, muito simplesmente, têm sido os próprios autarcas que, perante a própria impossibilidade de resolução, induzem à autoridade policial – igualmente incapacitada por dificuldades de toda a ordem – uma atitude de «tolerância» perante a prevaricação individual. E, assim, são os próprios eleitos que põe em causa o interesse comum, o interesse dos eleitores que neles delegaram o poder para o exercício da autoridade, uma autoridade que é decorrente do mais significativo dos actos democráticos, no contexto de eleições, num Estado Democrático de Direito. 

Enfim, sem qualquer ponta de moralismo, parece ser tempo de acabar com esta perversa «tolerância» que, perante a nossa implícita aquiescência e condescendência, se transformou num dos piores inimigos, nela em que também radica a matriz da designada cultura do desleixo, expressão tão feliz de Jorge Sampaio, um dos mais ilustres sintrenses.

 

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia] 

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